terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

- você me fez acordar para fora das coisas, na calçada da linguagem - ele me disse, e ficou andando feito num tonto naquelas ruas de sol e poeira.

Vivia imerso numa atmosfera de névoa, os cavalos vinham num galope sem cabeça. Permaneci desacordada durante quantos sábados?
Veio minha avó, trazendo ovos cozidos num  vidro grande de maionese, o cabelo preso num coque avolumado. Por cima da minha cabeça, eu via passar um grande cemitério.
"A realidade para mim... a realidade para mim é este edifício de dois andares".
Dona Olímpia, por favor, arrume esta mesa. Os meninos logo chegam, com seus carrinhos de lata puxados por barbantes, os vira-latas vêm seguindo o cheiro da carne. Os horrores vingam-se nas imagens que estendemos; se dispunham na sala absolutamente vazia. Eu passava com um copo dentro do outro, equilibrando-me entre as gerações. Tropecei numa pequena. Arrumei desafetos a tarde inteira. A tarde inteira batendo boca, o seu problema é que você acredita que é loira demais, que é estudante de medicina demais, que faz trabalho voluntariado demais. A beata sacristia. Batiam na porta, acendiam as luzes, esmurravam as teclas do piano. Não me deixaram sozinha, as vozes. Eu agora precisava de uma saída emergencial. Me olham de esgueio?
O telefone tocou a tarde toda. Atendi. Reino dos bichos e dos animais. Foi engano. Atendi. Era um grupo de meninos, eles comiam carne no palito, espumavam-se. Convidavam-me aos gritos. Vade retro. Vem porque senão. Ela até tomou banho para você. Faz chuva, mas nestes dias, come-se melhor. Os gatos atravessaram a tarde inteira, rodando no espeto. Vem, menina. Em brasa. Eles não me deixaram ainda, querida. Pegaram a chave, daqui vejo a cidade em chamas. Fui tomar banho, três pares de olhos no espelho. Madalena ainda deixou este rinoceronte de saboneteira.

Ele tratou de trazer-me pelas mãos. Seus olhos estão à altura dos meus e eu sei que agora ambos desconhecemos o trajeto. Eu preciso que ele equilibre-se, ilusoriamente, e ainda não tenha o menos controle sobre esta estrada - esta enorme escadaria, para onde nos leva? -, eu preciso que este homem que não conheço me estenda as mãos e como que pergunte:

- Confia?

Você sabe que se acender as luzes, tudo não passará de uma fábula. Estará ali um homem ordinário como são todos, luminoso como outros. Se continuar tirando a casca desta cebola, restará um silêncio sem remetente. O silêncio dos que desaprenderam.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

"Em mim há vozes há muito tempo emudecidas".

Desde criança, a brincadeira íntima e muda de fazer falar palavras no papel. O jogo preferido era o de dados que tinham letras, ao invés de números, onde eu me encantava com a descoberta de que de arco podia derivar cora, ar, cor, aro. O hábito de escutar músicas costurava paisagens e sons às imagens acústicas. O sol penetrando as janelas com a Gal que minha irmã colocava para acordar nunca escapou das retinas de dentro. Daí, o gesto de escrever descendeu primeiramente para confessar meu amor e pedir correspondência. Talvez até hoje a escrita seja, assim, uma tentativa de fabricar companheirxs, forjando laços que saltavam do artifício para ganhar estrada. Pois foi com a palavra que teci a maior parte de minhas relações íntimas de maior valor. A invenção do afeto pela linguagem.
Quantas e tantas vezes repeti que escrever era minha forma de criar resistência e valor. Em períodos de paixões tristes, soturna diante da luz diurna, ascendia ao luar das lamparinas presas a cada gota de verbo, azeite nutriz para lubrificar os cantos que vinham celebrar a força, Foi com as palavras, também, que Mazé me socorreu nestes tempos de dor, trazendo a sua infância na roça, as bonecas de palha de milho, o boqueirão, a imagem da menina que ia pegar água e passava o dia inteiro na bica cantando. "Ela nasceu numa cidade que era uma rua sem saída chamada Vai-e-Volta", assim começava o meu livro com suas memórias, apunhado de textos que perdi nos caminhos cibernéticos. Com a conversa, então, podia alçar outros tempos, buscar uma respiração fresca. Descoberta poderosa de que da boca para a grafia existia uma distância irredutível e interessante.
Depois, nos tempos de Recife, encrustados de solidão e cachaça, descobri que viajava para escrever aos que ficaram. Escrever a distância. "Como se ter ido fosse necessário para voltar".
Dos poucos períodos cursados na faculdade de Letras, trago um estupor que me acompanha até hoje, A violência de obrigar uma única norma em detrimento das tão várias formas de linguajar.